No Canadá, até ensino fundamental tem disciplinas a distância
CAMILA MARQUES
da Folha Online
O Canadá foi um dos primeiros países do mundo a implantar a educação a distância (EAD) de uma maneira massiva, a partir do século XIX, quando se usava material impresso enviado por correio. Com uma população de 32 milhões de habitantes para uma uma área de quase 10 milhões de quilômetros quadrados (o Brasil tem pouco mais de 8,5 milhões de quilômetros quadrados), o Canadá tem áreas de difícil acesso, principalmente no norte do país. Desse modo, o ensino não presencial foi percebido como uma ferramenta para democratizar o acesso à educação em todo o território.
O perfil político do país, que tem como prioridade oferecer à população condições iguais de desenvolvimento, é um dos principais motivos para a consolidação da EAD no Canadá. Associado a isso, está o investimento em tecnologia. A facilidade de acesso à internet, por exemplo, é plena, já que 90% das residências do país hoje tem banda larga --fora isso, todas as bibliotecas e escolas públicas também oferecem o serviço.
Arquivo pessoal |
Lúcio França Teles |
"Estima-se que 72% dos canadenses acessam a web diariamente e que nove em cada dez estudantes têm um computador em casa", afirma o professor brasileiro Lúcio França Teles, 56, Professor Adjunto da Faculdade de Educação da Simon Fraser University, no Canadá, onde vive há 25 anos. Ele vem ao Brasil para visitar a família e participar de debates sobre EAD.
Phd na Aplicação de Computadores para a Educação, Teles é um dos 150 pesquisadores convidados em 26 universidades canadenses para integrar o Centro Nacional de Excelência em Educação On-Line do governo federal do Canadá.
Confira a seguir a entrevista sobre educação a distância que ele concedeu à Folha Online.
Folha Online - Aqui no Brasil, o MEC (Ministério da Educação) precisa autorizar a criação de cursos de graduação. Apenas os técnicos e de extensão não precisam obter autorização. Como funciona o surgimento de um curso de educação a distância (EAD) aí no Canadá? As universidades, faculdades ou centros educacionais têm liberdade, autonomia, para isso?
Lúcio Teles - No Canadá as universidades decidem o que fazer em relação a cursos de educação a distância. Não existe legislação a respeito. Se a faculdade de educação da universidade onde estou (Universidade Simon Fraser), por exemplo, deseja fazer um programa de mestrado on-line, um professor deverá encabeçar a iniciativa, escrever a proposta do mestrado on-line e obter a ratificação do comitê executivo da faculdade. Depois disso, a proposta é enviada ao conselho superior da universidade e aprovada. A partir daí o programa pode ser criado e oferecido.
No caso de cursos individuais, seja de graduação ou pós-graduação, o professor interessado deve obter o aval do diretor da faculdade. Geralmente, cada universidade tem um CED (Centro de Educação a Distância). Quando o professor tem seu pedido aprovado pelo diretor da faculdade, ele vai então ao CED, onde irá trabalhar com a equipe de produção de cursos on-line. Um curso como este é produzido em quatro meses, em média.
No boletim escolar do estudante não consta o tipo de curso que ele fez, se foi ou não a distância. Aparecem apenas as notas obtidas nas matérias.
Folha Online - Qual a estimativa de pessoas que hoje se utilizam do serviço e quantas já usufruíram da EAD no país até agora?
Lúcio Teles - Apesar do Canadá ser um país imenso, com quase dez milhões de quilômetros quadrados, a população é pequena, de 32 milhões de habitantes. Para servir a esta população o país conta com 56 universidades, quase todas públicas, e cerca de 90 escolas de ensino profissionalizante.
É difícil, entretanto, saber o número exato de pessoas que utilizam a educação a distância. Em primeiro lugar, justamente por causa da liberdade de se criar cursos assim. Em segundo lugar, porque a educação a distância é oferecida em várias modalidades. Às vezes é só on-line e às vezes tem partes presenciais.
Mas é possível fazer estimativas. Em 2002, enviamos questionários aos administradores das 56 universidades canadenses, e somente três não ofereciam educação a distância. O Conselho das Universidades de Ontário estimou que, em 1999, havia o equivalente a 26 mil estudantes usando a educação a distância no Estado, ou seja, um em cada nove universitários. Se isto for transferido para o universo total de estudantes em toda a nação, teremos uma estimativa, para o ano de 1999, de 65 mil estudantes cursando o ensino superior a distância.
Se utilizarmos os indicadores mais recentes das universidades, pode-se dizer que há 640 mil estudantes em educação superior no país. Considerando-se que o crescimento da educação a distancia é de aproximadamente 15% ao ano no Canadá, teremos hoje mais de um terço, ou cerca 260 mil alunos, que usam cursos de educação a distância em modalidade híbrida ou inteiramente on-line.
Folha Online - Quantos cursos de EAD existem no Canadá?
Teles - Uma estimativa, a grosso modo, apontaria entre 8 mil e 12 mil os cursos em educação superior a distância no Canadá. Temos universidades como a de Athabasca, em que todos os 600 cursos são a distância. Um consórcio de 13 universidades e escolas profissionalizantes chamado CVU (Canadian Virtual University) oferece 2 mil cursos.Em Ontário, o OntarioLearn.com, associação de 22 escolas profissionalizantes, oferece 400 cursos on-line.
Em relação à educação primária e secundária [no Brasil seria fundamental e média], temos apenas os dados para o sistema escolar de 1994. O Conselho dos Ministros de Educação do Canadá afirma que naquele ano um total de 225.321 estudantes em escolas primárias e secundárias participavam de 953 cursos a distância, onde algumas disciplinas são ensinadas de modo on-line. Como houve um crescimento acelerado nos últimos dez anos, se pode estimar que este número aumentou significativamente.
Folha Online - Como evoluiu a EAD no Canadá? Nos último anos, qual o ritmo de crescimento?
Teles - O Canadá foi um dos primeiros países do mundo a iniciar educação a distância, a partir do século XIX, quando se usava material impresso enviado por correio. Nos anos 70, algumas províncias criaram unidades especiais de educação a distância, tais como a Agência de Educação Aberta, na província de Alberta, a Open Learning Agency aqui na Columbia Britânica, e a Tele Université no Quebec.
Com o advento da internet, as possibilidades aumentaram ainda mais. Na década de 1990, o governo federal e governos estaduais iniciaram vários projetos tecnológicos e pedagógicos para apoiar o desenvolvimento da educação a distância desde escolas primárias até o ensino superior.
Em termos técnicos, o governo criou o CANARIE (Canadian Network for the Advancement of Research, Industrie and Education ), para desenvolver redes de transmissão de alta velocidade. Foi então estabelecida a Canet, hoje a rede de internet mais rápida do mundo.
Todas as escolas primárias e secundárias foram conectadas à internet. Os professores, em várias províncias, começaram a trabalhar a distância, de maneira colaborativa, para desenvolver um currículo comum em ciência, inglês, matemática e outras. Criou-se um padrão desde cedo.
Na educação superior foram criado os Centros Nacionais de Excelência em Teleaprendizagem, que contava com a participação de 33 universidades e 150 pesquisadores. A missão era desenvolver modelos pedagógicos apropriados a educação a distância on-line com o uso de softwares livres [programas criados e distribuídos gratuitamente]. Um destes software livres, o Hekima, foi traduzido para o português e será distribuído no Brasil pela Abed (Associação Brasileira de Educação a Distância).
Anteriormente, antes da implantação da internet ampla no Canadá, o modelo predominante de aprendizagem era baseado na transmissão de conhecimentos. O professor fazia uma palestra on-line e os estudantes tomavam notas. Com os modelos pedagógicos mais recentes, o ensino colaborativo foi introduzido e a aprendizagem baseado na construção do conhecimento, isto é, os estudantes trabalham em projetos comuns e aprendem noa dia-a-dia. Assim, o professor já não é o centro das atenções, mas um guia ou mentor que dá apoio ao trabalho dos estudantes.
Folha Online - No Brasil, a maioria dos alunos procura a EAD para complementar os estudos. São pessoas com alguma formação e mais velhas, a partir dos 25, 30 anos. Qual o perfil do aluno canadense e por que procuram a modalidade?
Teles - A idade dos estudantes universitários aqui, não somente os de EAD, está aumentando. Em 2002, 26% deles tinham 23 anos ou mais. Em 1965, apenas o 13% dos universitários tinham acima de 23 anos. Isto é resultado de pelo menos dois fatores. Primeiro a necessidade constante dos trabalhadores se aprimorarem, fazendo com que voltem à universidade.
O segundo motivo é o aumento do custo da educação, que força os estudantes a trabalharem enquanto estão na universidade. Isso eleva o tempo para a conclusão dos estudos. Esse reajuste de custo se deu nos últimos dez anos, pois tanto o governo federal como os estaduais reduziram o financiamento das universidades públicas em mais de 40%, por causa do déficit orçamentário. Isso forçou as instituições a aumentarem suas taxas.
Em alguns casos, como na Tele Université do Quebec, uma universidade especializada em educação a distância com 20 mil alunos, 70% são adultos que trabalham e com idade média de 34 anos.
Entretanto, se incluirmos todas as universidades, centros profissionalizantes, escolas primárias e secundárias, temos um perfil do estudante em EAD bastante amplo, indo desde o setor fundamental à pós-graduação, incluindo cursos de capacitação internos em empresas. Ou seja, a atividade de aprender va distância está se tornando comum a todos os níveis da sociedade canadense.
Um dos fatores importantes que tem promovido a educação a distância é a facilidade de acesso, já que 90% das residências do país hoje tem internet de banda larga. Estima-se que 72% dos canadenses acessam a web diariamente e que nove em cada dez estudantes têm um computador em casa.
Folha Online - A internet é a principal ferramenta para a EAD, contida aí a videoconferência. No Canadá é comum também o uso de outros materiais, como apostilas impressas, fitas de vídeo?
Teles - A principal ferramenta é mesmo a internet. Ao mesmo tempo, é bastante comum combinar os cursos on-line com apostilhas impressas, livros, CD-Room, fitas de vídeo. O programa no qual trabalho, Certificado de Educação Virtual, oferecido pela Universidade Simon Fraser inteiramente on-line, envia regularmente livros pelo correio aos estudantes que se registram para o programa.
Houve, no passado recente, prognósticos de que o advento da web eliminaria o uso do papel e o livro teria somente uma versão virtual. Na verdade, segundo nossas pesquisas, todas as mídias anteriores à internet se tornaram ainda mais comuns e mais usadas depois dela. Vídeo, som, livro, animações são agora usados regularmente para facilitar a aprendizagem.
Folha Online - O investimento e a existência de tecnologia de ponta ajuda a colocar o Canadá na liderança da EAD no mundo, além da política de inclusão social. O que mais o senhor citaria como diferencial do país para ter a EAD mais desenvolvida e eficaz?
Teles - Os fatores são vários. A grande dimensão geográfica do país, que leva a uma busca de soluções para a educação da população; a tradição do Canadá na liderança do desenvolvimento de tecnologias de comunicação, mesmo antes da internet; a liderança do governo federal e governos estaduais na implantação da internet no sistema educacional, isso associado ao desenvolvimento de novos modelos pedagógicos de ensino on-line levados a cabo pelos professores que promoveram o ensino na internet .
O mais importante, a meu ver, é o desenvolvimento de novos modelos de ensino pelos professores das escolas primárias, secundárias e professores do ensino superior, que levou a uma motivação maior entre os estudantes e a desmitificação de estudarem em cursos via internet.
Quando estudamos o avanço da educação à distância no Canadá, assim como em outros países, muitas vezes ficamos ofuscados pelo avanços tecnológicos que a internet oferece, como a velocidade da transmissão, a variedade da mídia, a qualidade do som, etc.. Entretanto, o que mais tem facilitado o avanço da EAD, é o uso destes novos modelos pedagógicos, que permitiram melhorar a qualidade da educação como um todo.
Folha Online - Há muitos alunos de outros países fazendo cursos desenvolvidos no Canadá? Há brasileiros?
Teles - A população estudantil de outros países está aumentando. Por exemplo, há muitos estudantes da Ásia nos nossos programas. Existem brasileiros, mas ainda são poucos. Calcula-se que aproximadamente 10% dos estudantes on-line do Canadá são de outros países.
Folha Online - Nos cursos de graduação, como ocorre a seleção dos estudantes? Há alguma prova?
Teles - Para cursos de graduação, estudantes são selecionados baseados nos resultados dos últimos dois anos da escola secundária. É considerada a média das notas obtidas. Aqueles com média mais alta têm mais opções de escolha. Aqueles com média baixa, terão que repetir os últimos dois anos da escola secundária e elevar as notas.
Folha Online - No geral, como é a rotina de um curso? Há um programa a seguir semanalmente, por exemplo?
Teles - Sim, existe uma rotina a seguir. Cada matéria de um curso universitário contém 13 unidades, correspondentes a 13 semanas. Para cada semana, uma unidade deverá ser completada. A forma de como é feita depende do modelo pedagógico sendo utilizado: algumas são feitas como trabalho de grupo, quando o modelo colaborativo é usado. Outras tarefas são feitas individualmente. Se o estudante não pode fazer as tarefas no prazo determinado, ele deverá contatar o professor e pedir uma extensão para terminar a tarefa.
Folha Online - Quais as perspectivas para a EAD no Canadá nos próximos anos?
Teles - A educação on-line está crescendo continuamente, cerca de 15% por ano em educação superior. No sistema secundário o ritmo é mais acelerado, chegando em alguns Estados a um crescimento de 25% anualmente.
Nos próximos anos, veremos a concretização de novos modelos de aprendizagem e a desmitificação de que a aprendizagem presencial tem qualidade superior do que a on-line. A afirmação de que a aprendizagem presencial melhor não é apoiada em evidências ou fatos, é um preconceito que deverá perder credibilidade nos próximos anos. Particularmente com mais pesquisas sendo conduzidas sobre a qualidade do ensino on-line. A verdade é que os estudos da área são poucos no mundo tudo.
Folha Online - O que o senhor cita como as principais vantagens e as principais desvantagens da EAD?
Teles - Essa pergunta nos leva repensar a própria educação presencial. Porque hoje pensamos separadamente a educação presencial e a on-line. Entretanto, cada vez mais o ensino tradicional contém elementos do on-line. Ainda que os estudantes tenham que ir à sala de aula, eles devem ter um computador e acessar a web para vários trabalhos escolares. Inclui-se aí buscas de material informativo, visitas a bibliotecas virtuais ou a sites relevantes ao trabalho que fazem, comunicação com centros de pesquisas.
Então existe a assimilação de uma pela outra: a educação presencial está cada vez mais integrando componentes da educação on-line, como o acesso a sites ou a discussão com colegas de aula via chat ou fóruns. Neste sentido, uma distinção rígida entre presencial e on-line já não é possível.
Que já fez cursos on-line, no qual modelos interativos e colaborativos são utilizados, sabe que a distinção é muito tênue. Ainda que se possa pensar que poderíamos conhecer melhor um professor ou colegas em aulas presenciais, se percebe que existe plena interação pela internet.
Ainda que muitas vezes pensemos o contrário, na verdade a presença física não determina a qualidade da aprendizagem nem a qualidade da camaradagem entre colegas. Isso ocorre bem ao nível conceitual e pragmático.
Fonte:www1.folha.uol.com.br
Um comentário:
O Brasil tem muito o que aprender com o Canadá em termos de organização, ao menos neste aspecto. Sempre se fala na extensão territorial quando se quer culpar alguma falha administrativa, mas países como o Canadá e os EUA são tão grandes quanto e parecem dar conta. Ainda precisamos amadurecer muito no aspecto de ensino a distância, apesar de que este está ficando cada vez mais popular no Brasil, felizmente. Acredito que a popularização da Internet tem contribuído também, mas ainda falta muito a parte social da coisa. Ainda há muito preconceito com qualquer tipo de aprendizado que não seja aquele clássico, na sala de aula, em que o professor ministra, o aluno copia no caderno e dps faz tarefas de casa. O ideal é acabarmos com esta padronização o quanto antes, para termos uma maior cultura de aprendizado no dia-a-dia, e não só em ambiente escolar.
Postar um comentário